Número de casos de doenças negligenciadas continua crescendo no País
O número de casos de hanseníase, tuberculose e sífilis, três da lista de doenças milenarmente negligenciadas que o Ministério da Saúde prometeu eliminar, continua crescendo no Brasil. Os portadores do mal de Hansen, antiga lepra, eram em janeiro de 2016 cerca de 56 mil, dos quais 24.612 notificados nos meses anteriores e 31.568 já em tratamento, conforme dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A taxa de prevalência caiu de 4,52 por dez mil habitantes em 2003 para 1,42 por dez mil habitantes em 2013, um progresso apreciável, mas ainda abaixo da meta da Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera tolerável a prevalência inferior a 1 por 10 mil habitantes. Doenças tropicais negligenciadas como a malária, cólera, leishmaniose, tracoma, dengue, esquistossomose, febre amarela e doença de Chagas também deveriam ser eliminadas ou reduzidas a índices toleráveis.
“Estabelecida para o período de 1991-2000, a meta foi prorrogada três vezes, valendo agora para 2015-2020”, disse a dermatologista Leontina da Conceição Margarido, professora assistente do Departamento de Dermatologia da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Departamento de Dermatologia da Associação Paulista de Medicina, que há mais de 40 anos trata de pacientes de hanseníase. “O Brasil integra os 17 países com 94% dos casos do mundo e diagnostica a segunda maior quantidade de casos do mundo”, informa a médica. Pior do que a Índia, que tem maior número de doentes, mas com prevalência menor, pouco mais de 2 por dez mil habitantes. Na Índia, 70% dos doentes são não contagiantes.
Os mapas epidemiológicos do Ministério da Saúde representam apenas a ponta de um iceberg, alerta Leontina, porque não entram nas estatísticas os casos ocultos, aqueles que não são diagnosticados pelos médicos. Cerca de 60% dos doentes brasileiros são do grupo contagiante e há muito se considera, segundo a especialista, que todo brasileiro seja um contato da moléstia de Hansen. A maioria da população mundial é resistente à moléstia, que em geral começa na infância. Embora também subdiagnosticadas, 80% das crianças com hanseníase são identificadas e tratadas quando a doença ainda não é contagiante. A OMS aconselha a multidrogaterapia para eliminar a moléstia, mas apenas esse tratamento não é suficiente para controlar a endemia, na avaliação da dermatologista.
“É preciso fazer diagnóstico precoce da hanseníase, mas para isso precisamos melhorar o ensino e o treinamento de todos os graduados da área médica, e de modo intensivo, para controlar endemias tão graves como essa”, advertiu Leontina em audiência pública realizada em fevereiro no Senado. Os médicos brasileiros, em sua maioria, não estão preparados para identificar a hanseníase e outras doenças negligenciadas, como a tuberculose e a sífilis. O trabalho de formação de profissionais, não só de médicos, mas também de enfermeiros, tem de começar nas faculdades. Há escolas que não oferecem sequer uma hora de aula teórica sobre o assunto.
Além da precariedade na formação de profissionais, faltam medicamentos, como BCG e penicilinas, para tratamento das doenças. “Em São Paulo, nós temos falta de BCG, mesmo para doentes de classe social alta, que também não têm encontrado o medicamento”, informou Leontina, após ouvir da senadora Ana Amélia (PP-RS) que não havia a vacina em quantidade necessária em Porto Alegre. As maternidades aplicam a BCG em recém-nascidos e, com a detecção de hanseníase, as crianças devem receber uma segunda dose em casa. A moléstia de Hansen tem cura, sem sequelas, quando se faz o diagnóstico precoce, mas deixa sequelas quando o tratamento é tardio. A BCG aumenta a resistência imunológica contra hanseníase, tuberculose, sífilis e outras doenças.
Outro problema é a discriminação. Marly Araújo, representante do Grupo de Apoio às Mulheres Atingidas pela Hanseníase, denunciou na audiência publica do Senado, o tratamento que recebeu em 2000. “Até hoje, médicos se recusam a atender pacientes de hanseníase. ‘Eu não quero mais ser seu médico’ ou ‘Eu não quero mais ser seu dentista’, dizem os profissionais que se recusam a tratar de hansenianos, após o diagnóstico. Para Henrique Batista e Silva, do Conselho Federal de Medicina, trata-se de uma exceção, pois o médico é obrigado moralmente a atender pacientes de doenças infectocontagiosas.
A tuberculose, outra doença milenar negligenciada, registrou 73.577 novos casos em 2013, com 4.577 óbitos, ou 2,3 óbitos por 100 mil habitantes. “O Brasil está entre os 22 países que concentram mais de 80% de casos de tuberculose no mundo”, afirma Leontina Margarido. Em 2010, morreram sete vezes mais pessoas por tuberculose que por dengue. O quadro era um pouco melhor do que o de 2006, quando foram registrados 81 mil casos, com 4,5 mil morres. Cerca de 70% dos casos se concentraram em 315 municípios. Em 2013 ocorreram 9 milhões de casos novos e 1 milhão de óbitos por tuberculose no mundo.
O Ministério da Saúde informou, em novembro, que a sífilis voltou a crescer no Brasil, após um período de estabilidade. Os casos de sífilis adquirida (em adultos) aumentaram 32,7%, entre 2014 e 2015, enquanto o crescimento entre gestantes foi de 20,9% e as infecções por sífilis congênita, transmitida pela mãe ao bebê, subiram 19%. O governo admite que se enfrenta uma epidemia, dado o grande número de casos detectados de repente, em cinco anos.
Os números registrados pelos postos de saúde podem ser ainda maiores, em casos de doenças como a hanseníase, a sífilis e a tuberculose, porque a discriminação que acompanha moléstias infectocontagiosas desencoraja a notificação (compulsória) de novas ocorrências. Além disso, muitas pessoas, em especial ricas, da classe média alta, tendem a ocultar a doença, até dentro da família. A dermatologista Leontina Margarido revelou que entre seus pacientes houve até médicos que esconderam a hanseníase de suas mulheres e filhos.
“O Brasil tem-se mostrado historicamente campo fértil para as doenças negligenciada, por causa de sua localização geográfica, extensão territorial, distribuição demográfica e, sobretudo, da debilidade dos serviços públicos de saúde e das limitações da pesquisa científica entre nós”, lamenta o senador José Medeiros (PSD-MT), presidente da Audiência Pública sobre Doenças Milenarmente Negligenciadas, no Senado. Em sua opinião, o Congresso Nacional tem a responsabilidade de agir para minimizar o problema. Várias propostas em tramitação no Senado e na Câmara de Deputados podem facilitar o acesso a remédios caros ou importados que muitas famílias não conseguem comprar.
Fonte: O Estado de S.Paulo / Site
Autor: José Maria Mayrink