Dor de cabeça não é mera desculpa
Por: Rachel Costa
Fonte: CFF /Valor Econômico
Seu impacto sobre o organismo se assemelha àquele das grandes máquinas que, ao perder uma minúscula peça, causam colapso em toda a linha de montagem
Insuportável para quem a sente, mas quase imperceptível para quem vê de fora. Assim é a enxaqueca (migrânea, em termos médicos). Seu impacto sobre o organismo se assemelha àquele das grandes máquinas que, ao perder uma minúscula peça, causam colapso em toda a linha de montagem. Uma pequena alteração cerebral faz com que surjam fortes dores, cadenciadas em pulsações sobre apenas um dos lados da cabeça, acompanhadas por vertigens, que não raramente levam a desmaios. As vistas também se alteram, tornando qualquer feixe de luz uma espécie de intensificador para os outros incômodos. Como resultado dessa pane no sistema, qualquer pequeno esforço torna-se atividade hercúlea, sendo que para muitos “enxaquecosos” o sofrimento é tão grande que não resta outra alternativa a não ser cancelar os compromissos e ir para a cama.
Os sintomas descritos costumam se repetir entre os pacientes de enxaqueca, independentemente de sexo, gênero ou etnia. Sofrimento semelhante, porém, não significa que todos os pacientes receberão o mesmo tratamento – seja pelo médico, seja pela sociedade. É o que afirma a socióloga Joanna Kempner, da Rutgers University, nos EUA. Ela, que sofre com crises de enxaqueca desde a adolescência, deu um passo arriscado dentro do mundo acadêmico: transformou sua própria dor em objeto de estudo ao escrever o livro “Not Tonight – Migrainethe Politics of GenderHealth” (Hoje à Noite Não: Migrânea e as Políticas de Saúde e Gênero, da University of Chicago Press), no qual apresenta os aspectos sociais relacionados à doença.
Entre as doenças neurológicas, a enxaqueca é a que mais leva pacientes ao médico. Sua prevalência global está calculada em 10% da população, o que significa dizer que, só no Brasil, mais de 20 milhões de pessoas sofrem com o problema. Entretanto, apenas recentemente a enxaqueca foi reconhecida como uma doença do cérebro e muitas questões ainda permanecem sem resposta. Ainda não existe, por exemplo, um exame de imagem ou de sangue capaz de identificar com precisão a enfermidade. O diagnóstico vem do exame clínico e dos relatos do paciente. “Muitos chegam ao consultório frustrados por terem se submetido a diversos exames, mas não aparecer nenhuma alteração”, diz o neurocirurgião Benedito Amorim Filho, membro do grupo de dor do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
É nessa ausência de maneiras concretas para mostrar a dor, diz Joanna, que sobrevivem os resquícios de um passado no qual a enxaqueca era encarada como uma questão comportamental, uma espécie de “desculpa” inventada por pessoas frágeis, especialmente mulheres, para abster-se de suas atividades cotidianas – ideia com a qual a autora brinca no título (Hoje à noite não), em referência ao entendimento da dor de cabeça como uma escusa feminina para o sexo. Ligar a enxaqueca a uma “desculpa feminina” guarda um fundo de verdade: a doença é mais comum entre mulheres, em uma proporção de duas a três afetadas a cada homem. “A mulher está exposta a variações consideráveis nos níveis de estrógenos e progestógenos, o que influencia no surgimento e na ocorrência de enxaqueca”, diz Amorim Filho.
As coincidências entre o quadro clínico e o imaginário sobre a enfermidade, porém, acabam por aí. Desde que a enxaqueca começou a ser tratada no âmbito neurológico, o que se sabe é que as dores narradas por pacientes estão longe de ser meras “desculpas”.
Se a ciência já reconheceu a gravidade da enxaqueca, falta ainda à sociedade percorrer o mesmo caminho. “Os pacientes de enxaqueca foram estigmatizados durante séculos e isso ainda tem seus efeitos. Vários médicos não querem tratar suas pacientes `enxaquecosas` por acreditar que elas são resmungonas e neuróticas. E esses estereótipos afetam os homens também”, diz Joanna, citando um estudo que mostrou que um homem apresentando sintomas exatamente iguais aos de uma mulher tem menos chances de receber o diagnóstico de enxaqueca. “Há cerca de 300 milhões de homens com migrânea. Essa não é uma doença só de mulheres”, diz o neurologista William Young, que assina artigos científicos com Joanna.
No entanto, quando um homem recebe o diagnóstico de enxaqueca, ele tem mais chances de ser tratado com medicações para a dor, enquanto a mulher está mais suscetível a receber antidepressivos e tranquilizantes. “A dor masculina tende a ser tratada como uma emergência médica, enquanto a dor feminina ainda é frequentemente percebida como um problema emocional”, diz a socióloga. O neurologista Marcelo Ciciarelli, presidente da Associação Brasileira de Cefaleia, faz uma ressalva: no caso dos antidepressivos, há a possibilidade de seu uso terapêutico para o tratamento da migrânea. “Eles melhoram o funcionamento do sistema de analgesia interna dos pacientes ao aumentar a concentração dos neurotransmissores serotonina e noradrenalina”, diz Ciciarelli. O efeito, porém, vale tanto para homens quanto mulheres.
É naturalmente difícil compreender doenças nas quais não há alterações físicas evidentes, característica comum a muitos quadros clínicos de dor. Quando se fala de enxaqueca, diz Joanna, outros dois fatores se somam: o primeiro é a trivialidade. Todo mundo tem dor de cabeça e quem não sofre com enxaqueca tende a considerar a dor de cabeça da migrânea similar a uma dor simples, o que não é verdade. A segunda questão seria a própria indústria farmacêutica, que vende a cura como algo simples. “Nos Estados Unidos, onde as farmacêuticas podem fazer propaganda direta aos pacientes, os anúncios mostram a enxaqueca como algo fácil de tratar: você toma uma pílula e está tudo bem”, diz Joanna. “Entretanto, os melhores métodos para prevenir a migrânea reduzem a frequência dos sintomas pela metade e para metade dos pacientes tratados.”
O resultado dessa constante briga para convencer colegas de trabalho, familiares e mesmo médicos de que sua dor é real é a estigmatização dos “enxaquecosos”. Em um estudo de 2013, Joanna e Young compararam o estigma sentido por pacientes com enxaqueca crônica (que causa dor por mais de 15 dias ao mês) e com epilepsia, ambas doenças neurológicas, e perceberam que os primeiros se sentiam mais marcados pela doença. A chave para entender a questão está no impacto da enfermidade sobre o trabalho. “A sociedade tem dificuldade para entender que muitas vezes a migrânea pode ser frequente e severa o suficiente para impedir a pessoa de trabalhar”, afirma Yung. A visão da “desculpa para não fazer coisas” ainda sobrevive, apesar de todo o esforço da ciência para desconstruí-lo.
Mais que incompreensão, isso cria uma barreira invisível que dificulta a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. “Cerca de 25% dos pacientes com enxaqueca crônica estão desempregados”, diz Ciciarelli. As mulheres são as mais prejudicadas. “Por razões sociais, a paciente sofre mais no ambiente de trabalho ou na escola”, diz Amorim Filho. “A nossa sociedade capitalista e ainda machista acaba gerando esse tipo de resposta.”
Equívocos recorrentes:
Questão semântica
Muita gente acredita que enxaqueca é uma maneira diferente de dizer dor de cabeça. Enxaqueca é uma doença neurológica específica, na qual a dor de cabeça é um dos sintomas – mas não o único.
Questão de sexo
A maior prevalência entre as mulheres dá a falsa impressão a muitos homens de que enxaqueca é coisa de mulher. O neurologista William Young recebe de cinco a seis mulheres para cada homem, diferença de gênero bem superior à da prevalência da doença.
Questão de tempo
Há vários níveis de gravidade e frequência das crises de enxaqueca. A maior parte dos pacientes (48%) tem entre uma e quatro crises por mês, enquanto 25% tem mais de quatro crises mensais.
Questão de idade
Crianças também podem desenvolver enxaqueca e, antes da puberdade, a enfermidade ataca meninos e meninas na mesma proporção. Somente na adolescência é que o problema torna-se mais comum entre as mulheres.