Decisão do STF muda tratamento de hemofílicos
Além das dores agudas, os pacientes hemofílicos, quando não tratados, podem entrar em um quadro de debilitação e sangrar até a morte. A assistência disponibilizada na rede pública da capital federal ganha novo revez com uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte determinou que somente os medicamentos ofertados pelo Ministério da Saúde sejam disponibilizados e na quantidade do protocolo do Sistema Único de Saúde (SUS). Com a medida, a Secretaria de Saúde deixa de fornecer o Fator 9 Recombinante e o Fator 9 Recombinante de Longa Duração — normalmente requisitados via Justiça e comprados com recursos próprios. Ao todo, 229 pessoas têm a doença no DF, sendo que 125 (54,5%) se tratam na rede pública.
A suspensão liminar, ou seja, temporária, sustenta-se no prejuízo aos cofres públicos e no efeito multiplicador das demandas judiciais. Em 2015, foram nove ações judiciais exclusivas para Fator 9 Recombinante. Até junho deste ano, já eram três novas ações. A Secretaria de Saúde gastou, em três anos, R$ 8,2 milhões com a compra de fatores não padronizados pelo SUS. A variação de valores entre 2014 e 2015 chega a 123,2%. Até o início de agosto, o montante gasto foi de R$ 1,6 milhão. Em uma década, o Executivo local acumula 70 ações do tipo. O Hemocentro de Brasília distribuiu, no ano passado, um total de 40,4 milhões de unidades de fatores. Até maio deste ano, esse número era de 18,9 milhões.
O principal benefício dos fatores recombinantes e de longa duração é a diminuição da frequência de infusões: uma vez por semana ou a cada 10 dias — em vez de três vezes por semana, como ocorre com o tipo plasmático, distribuído pelo SUS. Entretanto, o STF considerou que já há política pública apta a assegurar a saúde dos hemofílicos e que o tratamento concedido pelas liminares não é superior ao oferecido. “Defiro em parte a medida liminar pleiteada a fim de determinar que os pacientes hemofílicos recebam tratamento conforme o Protocolo do Ministério da Saúde, ressalvada a necessidade de terapia diversa, desde que comprovada por junta médica oficial”, escreveu, em sua decisão, o ministro Ricardo Lewandowski.
O desalinho cresceu a tal modo que a Secretaria de Saúde recebeu outras cinco ações pedindo o Fator 9 Recombinante de Longa Duração — medicamento aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em fevereiro deste ano e que nem sequer tem valor estipulado no mercado brasileiro. O preço internacional é de US$ 2,85 (cerca de R$ 8,85, pela cotação de ontem) por unidade internacional (UI), aproximadamente três vezes o valor do Fator 9 Recombinante, que custa no Brasil R$ 2,84/UI.
Para a Secretaria de Saúde, a medida do STF dá trégua em uma batalha que se estende desde o ano passado e resultou em uma investigação (leia Para saber mais). “A decisão do Supremo Tribunal Federal refere-se apenas aos casos citados, mas reforça a correção dos parâmetros que são utilizados pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Saúde. São 17 os pacientes judicializados”, ressalta, em nota, a secretaria.
Críticas
A empregada doméstica Luciana Andrade Fatel, 34, passa a maior parte do tempo fazendo contas. Ela tenta administrar a medicação de Francisco, 9, de modo que as doses do Fator 8 Recombinante sejam suficientes para cinco semanas. A moradora de Valparaíso, distante 37km do Plano Piloto, diz receber 30 mil UI, em vez das 45 mil prescritas. “Fico com medo de acontecer alguma coisa grave. Tenho medo de ele ter uma lesão. Eu me sinto humilhada, é uma dificuldade sem tamanho”, lamenta. O menino recebeu o diagnóstico da doença aos 7 meses. Agora, ela crava nova batalha, pois discorda da decisão, e, na próxima semana, vai buscar ajuda na Defensoria Pública.
Ontem, o servente Necivaldo Pereira da Silva, 28, buscou doses do Fator 9. Apesar de o morador de Ceilândia ter um mandado judicial para receber o tipo recombinante, ele levou o tipo plasmático. “Fui um dos primeiros a ganhar causa para receber o tipo recombinante, mas ainda não tive resposta. Já entrei até com mandado de segurança, mas nunca recebi o Fator 9 Recombinante de Longa Duração”, reclama. Para ele, a decisão do STF prejudica os pacientes. “Tem que cumprir a prescrição médica. Vai ficar ainda mais difícil conseguir”, ressalta.
Para o Ministério da Saúde, a decisão do STF reconhece ações previstas no Programa de Coagulopatias Hereditárias. “Há proteção e tratamento com qualidade e sustentabilidade aos usuários, em todas as linhas de cuidado recomendadas pela Federação Mundial de Hemofilia”, destaca a pasta, em nota. Desde 2015, a autarquia tenta a adequação do serviço no DF a fim de evitar demandas judiciais — a distribuição de pró-coagulantes é de 12 unidades per capita para a hemofilia A e 2,8 unidades per capita para a hemofilia B, quantidade acima da média nacional.
A Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) garante que não há diferenças entre os fatores, a não ser a questão da diminuição de aplicações. No mês passado, a entidade enviou um manifesto ao ministro da Saúde, Ricardo Barros, reforçando a eficiência do tratamento disponibilizado na rede pública. “Tais protocolos e manuais técnicos seguem as recomendações de tratamento da Federação Mundial de Hemofilia e da Organização Mundial da Saúde (OMS)”, diz o texto, ao frisar que o referencial passa por constantes atualizações.
Diferenças
Os fatores plasmáticos exigem mais aplicações por semana. Os recombinantes — biotecnológicos e sem recurso da plasma — exigem menos infusões. Na década de 1990, esse tipo de medicamento ficou popular por conta da redução do risco de contaminação pelo vírus HIV. No Brasil, a Hemobras produz os fatores plasmáticos e importa os recombinantes.
Para saber mais
Investigação
O Ministério Público Federal (MPF) denunciou, em junho, três gestores do governo local, entre eles o secretário Humberto Fonseca, e um do Ministério da Saúde, por exposição de pacientes hemofílicos e coagulopatas ao risco de morte pela falta de medicamento preventivo e emergencial. O processo encontra-se em sigilo de Justiça, mas o Correio apurou que a ação está no gabinete da desembargadora Neusa Maria Alves, responsável pelo caso. Os acusados também vão responder por desobediência a ordem judicial. A Secretaria de Saúde apresentou defesa prévia. A denúncia foi formalizada após seis meses de investigação.
Fonte: Correio Braziliense