Carta aberta do CFF aos farmacêuticos e à sociedade
O Conselho Federal de Farmácia (CFF) é um órgão criado pela Lei no 3.820/1960, cuja atribuição precípua é a de zelar pela fiel observância dos princípios da ética e da disciplina da classe farmacêutica no Brasil, como forma de proteger a sociedade brasileira de práticas impróprias e danosas.
Ciente de sua responsabilidade social, a qual inclui o compromisso com a promoção do Uso Racional de Medicamentos, o CFF manifesta sua preocupação com relação aos rumos tomados nas discussões relativas ao enfrentamento da Covid-19 no Brasil.
Em 20 de maio de 2020, o Ministério da Saúde publicou o documento orientador “Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19”, no qual é expandido o acesso dos pacientes com tal diagnóstico a tratamentos farmacológicos, no âmbito do SUS. De acordo com a nova orientação, é facultado ao médico prescrever medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes com sinais e sintomas leves e moderados da doença, mediante o preenchimento de termo de consentimento e ciência, ou seja, é autorizado o uso off label – não constante na bula dos medicamentos aprovados pela Anvisa – desses medicamentos.
Constitui fato que os antimaláricos cloroquina e hidroxicloroquina têm sido utilizados na clínica médica, de forma isolada ou em associação à azitromicina, como alternativa no tratamento da doença provocada pelo novo coronavírus. Tal prática baseia-se, principalmente, nas propriedades farmacológicas desses medicamentos, não obstante carecerem de evidências mais robustas e conclusivas sobre a sua eficácia e segurança.
Contudo, é importante que se ressalte o risco da incidência de eventos adversos relevantes, entre os quais aqueles associados à sua toxicidade cardíaca, a qual apresenta o potencial de provocar um tipo de arritmia que, em determinadas circunstâncias, pode resultar em taquicardia ou fibrilação ventricular, levando à morte dos pacientes.
Na esteira das discussões sobre o uso desses medicamentos, várias entidades científicas nacionais e internacionais têm manifestado preocupação com o tema. A prestigiada revista científica The Lancet, divulgou, no último dia 22 de maio, o maior estudo observacional publicado até o momento sobre os efeitos da hidroxicloroquina ou da cloroquina, associada ou não com a azitromicina, em pacientes hospitalizados com diagnóstico da Covid-19.
Esse estudo não demonstrou o alegado benefício daqueles medicamentos, tanto no uso isolado ou em associação com o referido macrolídeo. Por outro lado, foram observados a diminuição da sobrevida hospitalar e o aumento da frequência de arritmias ventriculares.
Destaque-se que esses resultados levaram, inclusive, ao posicionamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) que anunciou, no dia 25 de maio, a interrupção do uso desses medicamentos em testes para o tratamento da Covid-19, até que sejam revisados os dados de eficácia e segurança.
Diante disso, o CFF ressalta a grande responsabilidade que repousa sobre os ombros dos farmacêuticos no acolhimento dos pacientes, bem como no ato da dispensação, de modo a garantir a melhor orientação possível sobre os riscos e cuidados no uso desses medicamentos, seja na sua indicação aprovada para o tratamento de pacientes com malária, atrite reumatóide ou lúpus eritematoso sistêmico, ou na excepcionalidade do uso off label, com especial atenção nas prescrições para o tratamento da Covid-19, enfatizando junto ao paciente todas as precauções necessárias, bem como buscando identificar as situações de risco que inspirem os cuidado adequados, observados a legislação sanitária e o Código de Ética que rege o compromisso do profissional em não causar dano e promover o máximo benefício ao paciente.
O CFF informa, ainda, que, segundo o artigo 14, da Lei no 13.021/2014, “cabe ao farmacêutico, na dispensação de medicamentos, visando a garantir a eficácia e a segurança da terapêutica prescrita, observar os aspectos técnicos e legais do receituário”.
Na Resolução CFF no 357/2002, que aprova o regulamento técnico das boas práticas de farmácia, o Conselho Federal de Farmácia reconhece o papel do farmacêutico na dispensação de medicamentos, atribuindo-lhe total autonomia na decisão de dispensar ou não, visando sempre a garantir a eficácia e a segurança da terapêutica prescrita.
Ressalte-se, também, que o Código de Ética da profissão farmacêutica, no artigo 14, inciso XXIII, da Resolução CFF no 596/2014, estabelece que é proibido ao farmacêutico “fornecer, dispensar ou permitir que sejam dispensados, sob qualquer forma, substância, medicamento ou fármaco para uso diverso da indicação para a qual foi licenciado, salvo quando baseado em evidência ou mediante entendimento formal com o prescritor”.
O CFF manifesta ciência de que o uso off label de certos medicamentos pode ser útil para o tratamento de determinados pacientes, em condições especiais de ausência de alternativas, conquanto que os benefícios se sobreponham a eventuais danos ao paciente. Todavia, reitera que o uso empírico de um medicamento, que é o caso do uso off label, não isenta o farmacêutico do respeito à técnica, ao rigor científico e às normas legais e bioéticas vigentes no Brasil.
Finalmente, ao tempo em que faz um alerta à sociedade a respeito dos riscos decorrentes do uso inadequado ou mesmo indiscriminado de medicamentos em situações de calamidade sanitária, o Conselho Federal de Farmácia coloca o Sistema CFF/CRFs à disposição das autoridades de saúde para o diálogo construtivo e propositivo nas discussões que envolvam a definição de protocolos de acesso a medicamentos utilizados no enfrentamento da atual pandemia, assim como apela para que, na tomada de decisões de impacto sanitário, sejam sempre observados os princípios constitucionais do Estado brasileiro para com a proteção da vida, a promoção e a preservação da saúde da população.
Conselho Federal de Farmácia
Brasília/DF – 26 de maio de 2020.
Fonte: Comunicação CFF