OPINIÃO PEC 108: ameaça a cláusulas pétreas, aos conselhos e à proteção do cidadão
Ao contratar um médico, um engenheiro, um contador, um psicólogo ou um advogado, o cidadão brasileiro tem a legítima pretensão de obter uma prestação de serviços de forma competente, ética e também consoante à melhor técnica profissional existente para suprir as suas necessidades.
É para assegurar que isso aconteça que a lei criou, na forma de autarquias profissionais, sujeitas ao regime de direito público, os conselhos profissionais (de medicina, contabilidade, administração, psicologia, engenharia, entre outros), que vêm sendo compreendidos, pelo Supremo Tribunal Federal – vide, entre muitos, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1717 – como responsáveis pelo exercício de uma função típica do Estado, a de fiscalizar o exercício da atividade profissional liberal para que esta seja adequada às necessidades coletivas.
Ao lado desses conselhos, há um outro, com tratamento especial da Constituição, que é a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Tal entidade, que é também autárquica, mas tem um regime jurídico especial e privado, é onerada com uma missão adicional: além de exercer, como qualquer outro conselho profissional, o poder de polícia e de seleção (no caso, mediante exame nacional unificado) sobre os advogados, segundo critérios ditados pela lei, ostenta a honrosa tarefa de defender a prevalência da Ordem Democrática e do Estado de Direito no Brasil.
A OAB, nos termos da Carta Política, por seu Conselho Federal, ostenta inclusive legitimação universal para propor ações de controle abstrato de constitucionalidade, ajuizadas a fim de proteger o ordenamento constitucional e a sociedade civil de ataques normativos que possam ser perpetrados pelas autoridades constituídas.
Sucede que tanto os conselhos profissionais comuns quanto a OAB só podem exercer essa atividade de fiscalização sobre os profissionais liberais, no atual regime constitucional, porque assumem a forma de autarquias.
De fato, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1717 e também o Recurso Extraordinário 539224, afirmou, categoricamente, que o poder de polícia, atividade tipicamente pública, não pode jamais ser delegado a entidades privadas estranhas à Administração Pública (a única exceção a essa regra é a própria OAB, autarquia sui generis, submetida a regime privado, a quem se reconheceu um status próprio inimitável).
Asseverou, ainda, o Supremo Tribunal Federal que a legitimidade do exercício do poder de polícia pelos conselhos profissionais estava atrelada à estrutura autárquica, já que autarquias não passam de serviços públicos personalizados que atuam como longa manus do Estado.
Naquela ocasião, a Suprema Corte do País também proclamou que é justamente a natureza autárquica que permite aos conselhos arrecadar contribuições profissionais de natureza tributária, que servem justamente para manter esse aparato fiscalizador e para dar-lhes autonomia real em relação a eventuais intrusões do Poder Público.
Afinal, se o Estado pudesse cortar, discricionariamente, a fonte de manutenção dos conselhos, estes ficariam em posição fragilizada para exercer qualquer oposição a atos governamentais abusivos contra a liberdade profissional.
Como se sabe, no exercício do poder de polícia que lhes é confiado por lei, os conselhos referidos e a Ordem dos Advogados do Brasil submetem os profissionais liberais fiscalizados em cada braço profissional específico a uma série de exigências éticas e técnicas, normalmente materializadas na própria lei e em regulamentos internos próprios.
Quando os profissionais liberais se desviam desses salutares parâmetros de atuação, instauram, até mesmo de ofício, processos disciplinares para apurar responsabilidades e, não raro, aplicam penas de suspensão e até de exclusão a membros de suas respectivas categorias, garantidos, evidentemente, o direito à ampla defesa e ao contraditório também no âmbito administrativo.
Isso é feito, naturalmente, não em nome de um espírito de vindita corporativo, mas para depurar o mercado de maus profissionais e para permitir que o cidadão possa contratar médicos, engenheiros, advogados, psicólogos e outros liberais com um mínimo de tranquilidade, com a segurança de que se trata de profissionais idôneos e preparados para o exercício profissional.
Ocorre que essa saudável estrutura institucional de fiscalização, que visa a preservar os interesses dos cidadãos, pode sofrer uma debilitação profunda caso seja aprovada, pelo Congresso Nacional, a deficientemente concebida PEC 108.
Tal proposta de emenda constitucional, conforme noticia a sua mensagem de encaminhamento, busca transformar a natureza jurídica dos conselhos profissionais e convertê-los em pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que atuam em colaboração com o Poder Público.
A motivação do governo, ao submeter o texto à apreciação do Congresso Nacional, é a de, alegadamente, “consolidar o entendimento de que os conselhos profissionais não integram a estrutura da Administração Pública, assim como definir parâmetros e limites para criação das entidades de fiscalização com base em critérios da doutrina da regulamentação das profissões. A medida também afasta, definitivamente, qualquer hipótese de equiparação da organização dos conselhos profissionais às autarquias integrantes da Administração Pública (…).”
O que se desejaria, assim, em outras palavras, é que todos os conselhos profissionais, por serem considerados meras entidades de direito privado, tenham empregados contratados na forma da CLT e que venham a se aposentar no regime geral de previdência social (RGPS).
Almeja o governo, ainda, afastar a exigência de concurso público para a contratação de pessoal, bem como afastar dos novos entes privados a aplicação da Lei 8.112/90.
Até aí, poder-se-ia pensar que se trata apenas de um remodelamento político da estrutura dos conselhos profissionais feito com a intenção de dar-lhes maior flexibilidade administrativa; estaria, ao ver da PEC, aberto a debate se tal modelo seria melhor para a defesa dos interesses coletivos do cidadão e para a proteção da liberdade profissional do que o que estabelece obrigações de impessoalidade e de concurso público para provimento de cargos como o retratado no art. 37 da Constituição, próprio do regime autárquico.
Sucede que a PEC, que silencia sobre o tratamento especial constitucional da OAB, mas parece inseri-la em seu espírito, ao suprimir a natureza autárquica de todos os conselhos, parece aquilatar muito mal os problemas que criará para a própria sobrevivência e legitimidade da fiscalização dos profissionais liberais e para a proteção dos interesses dos cidadãos.
Sem a natureza de autarquia, a capacidade dos conselhos profissionais de arrecadar a contribuição profissional – que tem natureza tributária e está radicada no art. 149 da Constituição – será diretamente desafiada.
Por isso, parece ter sido um descuido que a emenda venha a afirmar que lei federal disporá sobre a sua arrecadação por entidades particulares, como sugere o art. 174-B, IV, da PEC 108. Isso simplesmente não tem precedente no sistema jurídico fora do regime autárquico.
Abalada a capacidade arrecadatória – que precisaria da inusitada lei atributiva de competência a um ente privado para ser restabelecida –, é a própria liberdade profissional, direito fundamental inscrito no art. 5o, XIII, da Carta e cláusula pétrea, que sofrerá agressão.
Ora, é de todos sabido que os conselhos organizam a forma de exercício profissional dos liberais e zelam, ainda, pelo exercício dos direitos e prerrogativas dos profissionais inscritos, mas não poderão, a toda evidência, atuar eficientemente em regime de contingenciamento de receita.
Ademais, sem que os conselhos profissionais tenham a natureza de autarquia, restarão, na linha dos precedentes do STF, em xeque os seus poderes de exigir inscrições obrigatórias dos profissionais liberais, de impor requisitos para a sua seleção, de punir os desvios de conduta praticados no seu âmbito de supervisão profissional.
Em outras palavras, portanto, serão inviabilizados os meios pelos quais os conselhos protegem o brasileiro da contratação de profissionais inidôneos para defender os seus interesses nos mais variados campos da vida civil.
A seu turno, a delegação de poder de polícia, uma faculdade tipicamente administrativa, a ente estritamente particular estranho à Administração poderá ter sua validade questionada em ação direta de inconstitucionalidade por desafiar outra cláusula pétrea da Constituição Brasileira.
O certo é que delegar, por lei formal – e nesse conceito se incluem as emendas à Constituição – poder de polícia a uma entidade estritamente privada, sem vínculo qualquer com a Administração Direta ou Indireta, é uma forma velada de o Legislativo enfraquecer funções executivas, o que atenta contra o princípio da separação, harmonia e equilíbrio de poderes.
O art. 174-B, parágrafo segundo, inciso IV, remete, por sinal, a própria manutenção do poder de punir dos conselhos a um debate legislativo ordinário futuro sobre seus limites, o que poderia ser interpretado no sentido de impedir a aplicação de sanções enquanto não sobrevier a sua regulamentação infraconstitucional.
Aprovar tal conteúdo seria consagrar, portanto, um temporário estado de natureza e a ausência de regulação comportamental no mercado dos liberais, enquanto não sobrevier a dita lei federal. Nada mais afrontoso ao princípio da proporcionalidade, que vale também para proibir a proteção deficiente de bens jurídicos caros aos cidadãos brasileiros.
Além disso, o enfraquecimento dos conselhos delineado na PEC debilitará o exercício de diversos direitos fundamentais do cidadão, segunda cláusula pétrea ferida pela PEC.
Basta pensar que, em um regime debilitado de fiscalização profissional dos liberais, o cidadão poderá buscar médicos, odontólogos ou engenheiros antiéticos ou recalcitrantes em relação a regras de preservação da vida, da saúde e da segurança das moradias.
Para aqueles que sustentam que a PEC 108 reverte os precedentes excepcionais criados pelo Supremo e reverte a situação excepcional da OAB em relação ao exercício sui generis e privado do poder de polícia, imaginem o cenário de se abolir a inscrição obrigatória para o exercício do direito de acesso efetivo à justiça.
Suprimir a inscrição obrigatória tornaria inócuo o exame de Ordem e possibilitaria a bacharéis que não demonstraram habilidades mínimas para advogar defender direitos dos cidadãos à liberdade, à livre manifestação de expressão, à liberdade de culto, à propriedade, entre outros, sem condições técnicas mínimas para tanto, comprometendo a defesa de tais direitos fundamentais perante juízes e órgãos da Administração.
Em suma, se o governo deseja dar maior dinamicidade às autarquias profissionais e pretende apresentar uma emenda constitucional com tal finalidade, faça-o sem pretender desnaturar a sua estrutura autárquica, que é essencial para o cumprimento de suas funções, e, nos limites da Lei Fundamental, sem violar cláusulas pétreas.
Só assim as necessidades de proteção dos cidadãos brasileiros, complexas no que tange à contratação de profissionais liberais e no tocante ao exercício de seus direitos fundamentais, poderão ser atendidas em um ambiente de mercado propriamente regulado, sensível sobretudo ao fato de que, nele, as condições de competição são imperfeitas e marcadas sobretudo por uma assimetria de informação que dificulta a tomada de decisão de contratação pelo consumidor.
Alexandre Vitorino Silva é conselheiro seccional da OAB-DF.
Délio Lins e Silva é presidente da seccional OAB-DF.
Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2019